Pierre Toussaint: exemplo de santidade e fraternidade
Por que revolta, discriminação e racismo? A cordialidade e a fraternidade manifestam-se quando Deus é o centro de nossas vidas.
Redação (23/06/2020 15:00, Gaudium Press) No mundo antigo, cada povo tinha seu deus e só a ele podia prestar culto sob pena de traição ao seu deus ou injúria ao deus estrangeiro. Devido a este exclusivismo religioso, os povos se mantinham à distância e se olhavam como estranhos. Só havia uma lei: a do mais forte.
Essa situação mudou com vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo que derramou seu precioso Sangue para resgatar a humanidade. Através da Igreja nascente e a pregação do Evangelho, difundiu-se a ideia da fraternidade: todos os povos são irmãos por serem filhos de um mesmo Pai comum. Assim, passaram a reconhecer a existência de laços afetivos, reunindo-os sob o amor de Deus.
No exemplo dado a seguir, pode-se ver como o racismo e a Igreja Católica são totalmente incompatíveis, pois seus membros são conscientes de sua dignidade de filhos de Deus e do caminho que devem seguir: o caminho do céu, da santidade, que está ao alcance de todos, sem discriminação de origem, raça ou cor. De fato, o Catecismo da Igreja Católica deixa bem claro que nenhum batizado pode julgar-se excluído deste chamado à santidade: “Todos os fiéis cristãos, de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (2012).
Venerável Pierre Toussaint
A vida do Venerável Pierre Toussaint é mais empolgante do que qualquer romance ou novela épica. Ele não fundou uma Ordem religiosa, nunca fez um milagre, estava longe de ser um teólogo e mais ainda de ser um grande soberano. Era, pois, “um homem comum”? Na realidade, era um escravo.
Mas, na sua escravidão, aceitava com alegria a vontade de Deus e levou a dedicação à sua senhora a ponto de – tendo todas as possibilidades lícitas de tornar-se homem livre – permanecer desinteressadamente a seu serviço durante muitos anos.
Tratado com cordialidade
No lado ocidental da ilha de Hispaniola, os franceses fundaram São Domingos (atual Haiti), que foi por muito tempo a mais próspera das colônias francesas. Atraídos pela riqueza dessas terras, muitos membros da pequena nobreza vieram da metrópole para fazer fortuna na colônia. Entre eles, Jean Bérard, o qual obteve rápida prosperidade por meio de suas grandes plantações na cidade de Saint Marc.
Nessa época, em 1766, nasceu Pierre Toussaint. Desde muito tempo, sua avó Zenobe e sua mãe Úrsula, prestavam significativos serviços, como escravas, à família Bérard; uma, levando os filhos de sua ama a Paris, para lá receberem uma melhor educação, e outra, servindo de camareira íntima da família.
Pierre logo se tornou muito estimado, por sua alegria e gentileza. Declara uma amiga da família: “Lembro-me de Toussaint entre os escravos, vestido com uma jaqueta vermelha, muito espirituoso, entusiasta de música e dança, e devotado à sua senhora que era jovem e alegre.” O casal Jean e Marie Bérard dedicavam-lhe afeição a ponto de designar sua própria filha para ser madrinha dele.
Mas, os ventos da Revolução Francesa já tinham começado a soprar na França e em suas possessões de além mar. Em São Domingos, uma rebelião estava a ponto de irromper. Antevendo o perigo, em 1787, a família Bérard partiu para a então pequena, mas já rica, Nova York. Levaram consigo cinco escravos, entre os quais Pierre e sua irmã Rosalie.
Fraternidade e dedicação levada ao extremo
Passado um ano, Jean Bérard retornou à ilha para supervisionar suas terras e negócios. São Domingos já estava em plena revolta: nada havia a fazer ali.
Então ele, perspicazmente, encaminhou o devotado Pierre para o ofício de cabeleireiro. “Nisso deve ter entrado a mão da Providência” – diria Toussaint mais tarde, ao considerar quanto o exercício dessa profissão lhe foi útil para dar vazão à sua imensa caridade.
Com efeito, os infortúnios começaram a abater-se sobre a outrora rica e jovial Marie Bérard. Por assim dizer, num só golpe, ela perdeu o marido, vítima de pleurisia, a imensa fortuna representada por suas terras em São Domingos e, para cúmulo de desgraça, seus bens em Nova York, devido à falência da firma na qual estavam depositados.
Para ela, a “mão da Providência”, doravante, seriam as hábeis mãos de Pierre Toussaint… Vendo-se na situação de único homem da casa, ele assumiu o encargo de arrimo da família.
Sempre alegre e bem-humorado, percorria as ruas de Nova York, oferecendo seus serviços de exímio cabeleireiro às refugiadas francesas e às damas da sociedade americana. Sua habilidade profissional, seu trato respeitoso e gentil, e seu discernimento em escolher para cada senhora o modelo de penteado mais adequado, logo lhe proporcionaram fama na cidade.
Os resultados financeiros eram bastante compensadores. Como desfrutava deles o escravo Pierre Toussaint?
Com esses ganhos, ele tinha a alegria de… proporcionar à sua ama, agora viúva e desamparada, a mesma vida confortável de que ela até então havia desfrutado! Levou o enlevo e dedicação à sua senhora até um ponto atingido por poucos filhos em relação a seus próprios pais. Quando esta se casou novamente, ele passou a sustentar os recém-casados, pois logo seu marido perdeu o emprego de músico, devido ao fechamento dos teatros de Nova York.
Toussaint poderia facilmente conseguir a alforria e reservar para si uma boa soma em dinheiro, mas preferiu continuar a serviço de Marie Bérard.
Sua ama morreu pouco tempo depois, aos 32 anos de idade. Foi ele, servo bom e fiel, quem providenciou um sacerdote para ministrar-lhe os últimos sacramentos. Em seu leito de morte, ela concedeu a liberdade a Pierre Toussaint, proclamando que não havia recompensa terrena suficiente para retribuir- lhe os serviços prestados.
Já na condição de homem livre, esse católico modelar não alimentou sentimentos contra a senhora, mas permaneceu prestando serviços gratuitos ao viúvo de sua falecida senhora, Gabriel Nicolas, até que este se mudou para o sul do País.
Somente então Toussaint considerou-se desimpedido para, ele próprio, contrair núpcias. E já era tempo, pois alcançara 45 anos. Assim, em 1811, casou- se com Juliette Noël, também ex-escrava. Ela se revelou uma digna esposa dele, passando a ser a eficiente auxiliar e a incentivadora de suas obras de caridade.
Exemplo de santidade ao alcance de todos
Toussaint permaneceu no ofício de cabeleireiro até o fim de sua longa vida. Era sempre muito amável e cortês com suas clientes. Para alegrá-las, tocava às vezes algumas peças no violino, instrumento dócil em suas habilidosas mãos.
E elas o consideravam “um consumado gentil-homem”. Não por causa de roupas finas e bem-talhadas, que ele não tinha. Menos ainda por uma vasta cultura, maneiras elegantes e apurada educação mundana. Ele era um escravo negro, num país de acentuada discriminação racial!
O que, pois, lhe mereceu tão elevado conceito?
Um conjunto de diversos fatores: sua fé católica, posta em prática na vida quotidiana, o desejo de agradar a Deus, o coração transbordante de bondade cristã e as qualidades morais cultivadas de modo excelente por quem continuava a ser um “homem comum”. Com perfeita modéstia, conhecia o que lhe era próprio e sabia dar a cada qual o tratamento devido.
“Quão nobre e incomum era o seu caráter!” – depõe uma senhora que o conheceu de perto. E acrescenta: “Era, porém, o seu ‘todo’ que me impressionava; sua perfeita benevolência cristã, sua fé íntegra, seu amor e caridade, seu notável tato e finura de sentimentos, e sua justa apreciação daqueles que o circundavam. Sua religiosidade era fervorosa e sincera, a qual ele nunca abandonou por razões mundanas”.
Tudo por amor a Deus
Para sua clientela, o bondoso cabeleireiro era um confidente seguro e bom conselheiro. Nunca revelava os segredos que lhe eram confiados. Certa vez, indagado por uma bisbilhoteira a respeito de assuntos particulares de outrem, ele replicou: “Toussaint faz penteados, não é portador de notícias”. Para outras perguntas indiscretas, ele jeitosamente respondia: “Eu não tenho boa memória…”
O progresso na vida espiritual aumentava, em seu coração generoso, o desejo de fazer o bem aos necessitados. Assim, ele ampliou seu campo de ação beneficente. Levantou fundos para ajudar crianças abandonadas, construir orfanatos e igrejas. Durante vinte anos, foi o sustentáculo do Lar das Crianças de São Patrício. Enquanto a febre amarela ceifava milhares de vidas, ele cuidava dos doentes para ajudá-los a recobrar a saúde ou, não sendo isso possível, a morrer com dignidade.
Desta forma, Pierre Toussaint acabou sendo um dos pioneiros das obras de caridade na próspera Nova York.
Não se deve, todavia, pensar que tudo isso provinha de uma mera filantropia. Era fruto, sobretudo, de décadas de frequência diária à Missa, e de sua ardorosa devoção a Nossa Senhora. Pois a fonte do amor ao próximo encontra-se no amor a Deus.
Em Toussaint, esse amor íntegro e total a Deus refletia também em sua pessoa. Era tão honrado, que, sendo leigo e ex-escravo, havia pessoas que lhe pediam a bênção.
No dia 30 de junho de 1853, com 87 anos entregou sua bela alma a Deus, em odor de santidade.
Que belo exemplo de santidade! O centro de sua vida esteve sempre ocupado por Deus.A propósito de todas as coisas, agradáveis ou penosas, amou a Deus mais do que a si mesmo e, constantemente, levou as almas para Ele. Desta forma,maravilhas são realizadas e todo ódio, discriminações e ressentimentos desaparecem.
Por Padre Felipe Ramos
Publicado em Revista Arautos do Evangelho, ano 3, out. 2004, n. 34, p. 20-22.
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