Santa Luísa de Marillac, dócil à vontade de Deus
Santa Luísa de Marillac é cofundadora com São Vicente de Paulo do Instituto das Filhas da Caridade, o qual desde o século XVII age como um braço beneficente da Igreja, socorrendo pobres, enfermos e crianças, e entrou no século XXI com mais de 24.500 irmãs, disseminadas por cerca de 90 países.
Redação (15/03/2024 08:16, Gaudium Press) Nasceu Luísa em Paris, no seio de boa estirpe francesa, a 12 de agosto de 1591. Sua família de linhagem nobre era profundamente cristã. O nome Marillac está ligado, na França, a prelados, abades, sacerdotes, abadessas e religiosas.
Desde cedo conheceu a vontade de Deus
Tinha poucos dias de vida quando faleceu sua mãe. Aos 15 anos, morreu também o pai, Luís de Marillac, senhor de Ferrière e de Villiers. Começou então para a jovem uma série de provas e sofrimentos com os quais a Providência quis uni-la a Si: “Bem cedo me fez Deus conhecer sua vontade, que eu fosse para Ele pela cruz. Desde o meu nascimento e em todo o tempo, quase nunca me deixou sem ocasião de sofrer”.
Não obstante, recebeu esmerada educação: aprendeu literatura, filosofia e latim. Dotada de notável senso artístico, agradava-lhe pintar imagens e quadros. É digno de nota um que pintou, já adulta, e é hoje guardado como relíquia na casa-mãe das Filhas da Caridade: “Nosso Senhor Jesus Cristo em pé, de tamanho quase natural, com o coração radiante sobre o peito, estendendo suas mãos trespassadas, […] e com expressão de bondade”. Causa admiração saber que o Divino Modelo apareceu exatamente assim a Santa Margarida Maria Alacoque, cerca de 50 anos depois!…
É a representação d’Aquele a quem ela adorava no coração e para onde convergiam todas as operações de sua alma: “Tendo lido o Evangelho do bom semeador, e não reconhecendo em mim alguma boa terra, desejei semear no Coração de Jesus todas as produções de minha alma e as ações de meu corpo, para que, tendo o crescimento de seus méritos, eu não opere mais senão por Ele e n’Ele”.
A perda do pai mostrou-lhe a fragilidade das coisas mundanas. Acolhida pelo tio Miguel de Marillac, Conselheiro do Parlamento Real, católico fervoroso e benemérito de várias congregações religiosas, quis ingressar num convento de monjas capuchinhas. No entanto, por causa de sua compleição fraca e saúde delicada, foi dissuadida desse intento pelo confessor, Frei Honorato de Champagny, o qual já lhe discernia outros caminhos: “Minha filha, creio que são outros os desígnios de Deus”.
Uma graça mística lhe prognostica o futuro
Impedida de fazer-se religiosa, em 1613 casou-se com Antônio Le Gras, secretário da rainha Maria de Médicis, homem piedoso e de conduta irrepreensível. Dessa união nasceu-lhe um filho: Miguel, objeto de seu amor extremoso.
Luísa vivia na corte como esposa e mãe exemplar, mulher prudente, humilde, firme e abnegada. Nunca abandonou a Comunhão frequente, pouco comum naqueles tempos influenciados pelo jansenismo. Um de seus diretores foi Dom Francisco de Sales, amigo íntimo do tio Miguel. Após o falecimento do santo Bispo de Genebra, recebeu a sábia orientação do Bispo de Belley, Dom João Pedro Le Camus.
O ano de 1623 trouxe-lhe grandes provações. Por um lado, sentia sua alma inundada pelo intenso desejo de entregar-se mais ao serviço de Deus e do próximo. De outro lado, contudo, tal anelo parecia-lhe incompatível com suas obrigações de esposa e mãe. Somando-se a essa perplexidade, outras inquietações lhe assediavam o espírito: receava estar por demais apegada a seu diretor espiritual e assaltavam-lhe até mesmo dúvidas de fé.
A festa de Pentecostes veio devolver-lhe a paz de alma e descortinar, finalmente, o véu de seu futuro e de sua vocação. Eis como ela narra a graça recebida quando assistia à Missa na Igreja de São Nicolau dos Campos: “Num instante, uma voz interior me comunicou […] que logo chegaria um tempo no qual me encontraria em condições de fazer voto de pobreza, castidade e obediência, em companhia de pessoas que também o fariam. Compreendi que me encontraria num lugar onde poderia socorrer o próximo; mas não entendia como isso poderia se realizar, porque via ali pessoas que entravam e saíam. Quanto ao diretor, que eu ficasse tranquila, pois Deus me daria um”.8 Sentiu ela nesse momento a certeza de que quem lhe mostrava isso era o próprio Deus e, portanto, não havia motivo algum para duvidar.
Era a antevisão do Instituto de vida ativa que ela iria fundar, formado por “pessoas que entravam e saíam”, importante novidade para a época, como veremos adiante.
O encontro com São Vicente de Paulo
Por desígnio da Providência, o Bispo Le Camus não pôde ir a Paris no inverno seguinte, e encaminhou sua dirigida a um sacerdote amigo: São Vicente de Paulo.
Havia este fundado a Congregação da Missão, de sacerdotes dedicados à evangelização da pobre e necessitada gente do campo. Padre Vicente não gostava de dirigir senhoras da nobreza, mas abria algumas exceções. Assim – a pedido de outro grande amigo, São Francisco de Sales, fundador da Ordem da Visitação -, aceitara o encargo de orientar as Visitandinas de Paris, cuja superiora era Santa Joana de Chantal. O santo Bispo declarou que lhe confiara a direção de suas filhas espirituais por não conhecer sacerdote mais digno. A partir do primeiro encontro, não se pode falar de Santa Luísa de Marillac sem referir-se a São Vicente de Paulo.
Depois de muitos sofrimentos, de fato o senhor Le Gras faleceu cristãmente nos braços da esposa, em 21 de dezembro de 1625. A jovem senhora, viúva aos 34 anos, podia agora consagrar-se por inteiro ao serviço de Deus e do próximo. Abandonou a vida de sociedade e pôs-se nas sábias mãos de São Vicente.
União respeitosa e profunda entre dois santos
Nos primeiros quatro anos passados sob a orientação do santo diretor, procurou ele adestrar sua têmpera para as ousadias que a esperavam, segundo um tríplice princípio: “Amar a Deus com a força de nossos braços e o suor de nossa fronte; ver Jesus Cristo no próximo, amando e servindo a Nosso Senhor em cada um, e cada um em Nosso Senhor; e não adiantar-se à Divina Providência, esperando com calma sua voz de mando”.
Por obra da graça, formou-se entre ela e São Vicente de Paulo um entrelaçamento de almas indissolúvel. Sempre afáveis e vigilantes, os dois intercambiavam visitas e cartas, até à ancianidade, legando à História um perfume da verdadeira amizade fundada no amor a Deus. A correspondência entre ambos mostra o mútuo afeto e respeito com que se tratavam. Ela, humilde e com veneração filial; ele, simples, afetuoso, sobretudo religioso e grave, deixando entrever a cada passo “a sua alma de sacerdote, o seu coração de pai, e o seu zelo de santo”.
Uma das preocupações de Luísa era o filho. Seu afeto excedia os limites do amor maternal e deixava transparecer certo apego humano. O jovem Miguel, depois da morte do pai, ficara privado também do convívio materno e não se amoldou inteiramente à vida no seminário onde fora internado para completar sua educação. Além disso, alguns problemas na política francesa comprometeram a família Marillac, por sua influência e presença na corte. Tais circunstâncias afetaram o comportamento do rapaz, trazendo não poucas apreensões à mãe.
Com mão firme e paternal, São Vicente de Paulo veio em socorro de ambos. Admoestava a mãe pelos excessos de amor, e esta aceitava com inteira docilidade as advertências. “Oh, que alegria ser filho de Deus! Pois este Senhor ama os seus com um afeto ainda maior que o da senhora para com seu filho, apesar deste amor ser tão grande que não vi coisa igual em nenhuma outra mãe”. Com relação ao filho, soube compreendê-lo, e o acolheu em sua própria comunidade. E por não ter ele vocação sacerdotal, amparou-o até que se estabelecesse nas vias do matrimônio.
Surge uma nova concepção de vida religiosa
Dando curso a seu apostolado junto aos camponeses, São Vicente fundava, nas localidades onde pregava missões, uma pequena associação intitulada “Caridade”, levada adiante por senhoras abastadas da região. Conhecidas como as “damas da Caridade”, dispunham-se elas a prestar assistência constante aos necessitados, sobretudo aos enfermos. Não obstante, sem conexão direta com o seu fundador, tais associações logo se viam envolvidas com dificuldades não pequenas: ocorriam abusos, disputas pela autoridade, desvios de verbas e auxílios, rixas pessoais, etc. Faltava alguém que, com jeito e firmeza, pudesse visitar cada uma dessas “Caridades”, para manter a ordem e a harmonia.
Era a luz da Providência abrindo a trilha da vocação de Luísa. Foi ela a visitadora de São Vicente. E com o toque feminino da mulher forte da Escritura (cf. Pr 31, 10-31), ordenava e dava corpo aos frutos apostólicos dos incansáveis sacerdotes da Missão.
Além disso, outra necessidade mais premente se fazia sentir: as “damas da Caridade” não se sujeitavam aos trabalhos mais penosos, como o cuidado direto e pessoal dos enfermos. Era urgente arregimentar pessoas dedicadas e dispostas a qualquer humilhação, que fossem as “servas da Caridade”. São Vicente encontrou tal disposição em muitas jovens que conhecera em suas andanças, e as encaminhou para Santa Luísa, a fim de serem formadas de acordo com seu espírito. As jovens desta pequena comunidade nascente logo passaram a ser chamadas de “irmãs da Caridade”.
Surgia assim uma nova congregação, a Companhia das Filhas da Caridade. O instinto materno dessas jovens religiosas se debruçaria sobre os enfermos e carentes, por amor a Deus. Seriam virgens e mães dos pobres e necessitados, inicialmente no campo, mas logo também nas cidades, inclusive Paris. Atendiam nos hospitais, procuravam os doentes em suas casas, recolhiam em orfanatos crianças abandonadas. Não tardou a serem solicitadas para exercer suas beneméritas atividades em situação de risco, como lugares devastados por sangrentos combates, onde socorriam os feridos e moribundos.
Dispostas a todos os sacrifícios, tinham elas consciência de não serem religiosas segundo os moldes do tempo, ou seja, não pertenciam a um Instituto de freiras enclausuradas. São Vicente deixa-lhes bem claro este ponto: “Vós não sois religiosas”. Porém, empenha-se em confirmá- las na sua singular vocação: “Eu vos certifico não conhecer religiosas mais úteis à Igreja que as Irmãs da Caridade, em razão do serviço que prestam ao próximo”.
Claro, não podiam elas negligenciar a contemplação, no sentido de uma vida de piedade vigorosa, fundamento de seu apostolado: fazer tudo por amor a Deus, vendo Nosso Senhor em cada pobre e doente, dentro da obediência a uma regra bem definida. Mas a nova Instituição une a este espírito a vida ativa, profunda inovação para o tempo: “As Filhas da Caridade terão por convento um hospital, por cela um quarto de aluguel, por claustro as ruas da cidade ou as salas das casas de saúde, por termo a obediência, por freio o temor de Deus, por véu a santa modéstia”.
Obediência incondicional ao fundador
É impossível, em tão curtas linhas, narrar o imenso bem feito por esses dois santos. Lutas, dificuldades e provas não faltaram, tanto materiais como espirituais; entretanto, eram elas enfrentadas com coragem e lucidez, na certeza do cumprimento da vontade do Pai.
Fiel a toda prova, Santa Luísa de Marillac conduzia o novo Instituto na obediência incondicional a seu fundador. Dada a união entre suas almas, sabia estar a vontade de Deus na vontade dele. Ele, por sua vez, com intenso discernimento, sabia distinguir as jovens que tinham verdadeira vocação, e ajudava a santa na formação das inúmeras filhas, cujo número só aumentava. Juntos elaboraram as regras e deram forma canônica à Congregação, a qual foi aprovada pelo Arcebispo de Paris em 1655, após 30 anos de árduo apostolado.
Movido por seu zelo paternal, e acedendo aos desejos de Santa Luísa, São Vicente empenhava-se em consolidar a obra recém-nascida. Fazia isso, sobretudo, através de uma série de conferências cheias de fogo e entusiasmo, nas quais ele incentivava suas filhas espirituais nas vias da santidade, de acordo com o carisma da fundação: “Humilhai-vos muito, minhas caras Irmãs, e trabalhai por vos tornardes perfeitas e fazer- vos santas” – insistia ele.
Luísa foi das primeiras a anotar e guardar cuidadosamente as palavras de seu pai e fundador. Entre anotações de conferências e cartas, acabou constituindo três volumes, num total de 1500 páginas. Essa coleção manuscrita, intitulada Máximas e Avisos, está, ainda hoje, guardada nos arquivos da Companhia. Todo este tesouro compõe o “mais autêntico e puro depósito da doutrina e do espírito” que deve animar as Filhas da Caridade de todos os tempos.
“Vá na frente, logo tornarei a vê-la no Céu”
Santa Luísa de Marillac preservou intacta sua inocência batismal. O testemunho de São Vicente a este respeito é inquestionável: “Que vi nela desde 38 anos que a conheço? Vieram-me à lembrança alguns pequenos mosquitos de imperfeição, mas pecado grave nunca! Nunca!”Pois bem, a essa alma inocente pediu Cristo Jesus o sofrimento derradeiro: privar-se do convívio com o venerado fundador. Ficou ela seriamente enferma e já não podia visitá-lo; este, por sua vez, já com 85 anos, tampouco se levantava da cama ou escrevia. Maior sacrifício seria impossível pedir-lhe. Um recado dele foi o último contato entre ambos: “A senhora vá na frente, logo tornarei a vê-la no Céu”.
Após receber todos os Sacramentos, entregou sua alma a Deus no dia 15 de março de 1660, aos 68 anos. De fato, seis meses depois, São Vicente foi encontrá-la na eternidade. Seu corpo encontra-se sepultado na capela da casa-mãe da Congregação, na Rue du Bac, em Paris, onde Nossa Senhora, chancelando essa obra tão amada por seu Divino Filho, apareceu em 1830 a uma de suas filhas, Santa Catarina Labouré, para dali derramar torrentes de graças sobre o mundo inteiro, por meio da Medalha Milagrosa.
Por Irmã Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP, Revista Arautos do Evangelho, Março/2012, n. 123, p. 32 à 35
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