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Destinação universal ou Propriedade Privada?

Emergente de diversos campos da ética e do conhecimento, o tema da propriedade privada ressurge na atualidade com novos panoramas e ousadas consequências. A Igreja Católica, desde os primeiros séculos até os inovadores conceitos da doutrina social, tomou posição face à problemática, dando resposta para todos os católicos e homens de boa vontade.

Reforma agraria

Redação (26/06/2021 10:31, Gaudium Press) Há muitos anos que o Brasil se livrava de uma discussão problemática, que levaria a cabo um projeto certamente nocivo para a sociedade: a questão “Reforma Agrária”. Entretanto, certas tendências e informações demonstram que o assunto emerge de um novo horizonte, atingindo não apenas as esferas políticas, mas também os âmbitos doutrinários da moral, preocupantes para os católicos de nosso tempo.

Afinal, o que podemos pensar dos ensinamentos da Bíblia, da tradição dos Padres, do Magistério e dos avançados conceitos da doutrina social da Igreja a este respeito?

É o que abordaremos nas próximas linhas.

O Destino Universal dos Bens

De acordo com o Concílio Vaticano II, “Deus destinou a Terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos”.[1] Esta verdade está baseada no livro do Gênesis, segundo o qual Deus entregou ao homem todo o mundo criado, submetendo todas as criaturas ao senhorio e à administração responsável do ser humano (Cf. Gn 1, 38-30).

Em uma linguagem atual do Magistério, este é o chamado “princípio de destinação universal dos bens”.[2] Não se trata de um direito do homem – pois é Deus quem destina as criaturas –, mas de um princípio do qual derivam certos direitos, sem os quais tal princípio seria violado ou mutilado.

Consideremos um exemplo: podemos dizer que os direitos humanos derivam do princípio de dignidade da pessoa humana,[3] criada à imagem e semelhança de Deus. Isto significa que, quando o princípio de dignidade humana se aplica para o campo social, deve ser assegurado por direitos derivados do mesmo princípio, que no caso concreto são os direitos humanos.

Pois bem, o princípio de destinação universal dos bens traz consigo a concessão de direitos, dentre os quais:

  • Direito universal ao uso dos bens;
  • Direito de propriedade.

É comum entre alguns revolucionários pensadores a contraposição entre estes dois direitos. Porém, segundo os ensinamentos comuns da Igreja, estão muito enganados.

O Direito Universal ao uso dos Bens

O primeiro direito derivado está relacionado ao uso dos bens, por onde, “todo homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento”.[4] “Os bens da criação são destinados a todo o gênero humano”[5], porque “Deus entregou a terra em comum a todos os homens com o desígnio de que todos gozassem dos bens que produz em abundância, não para que cada um, com avareza furiosa, vindicasse para si todas as coisas, nem para que alguém se visse privado do que a terra produzisse para todos”.[6]

Santo Ambrósio, defendendo com ênfase este direito, acrescenta: “a terra é de todos, não apenas dos ricos; mas são muito menos os que gozam dela do que os que dela não gozam”.[7]

Precursor da “Reforma Agrária”? NÃO!

Com estas palavras, o Santo Bispo de Milão “tenta apenas condenar – com toda contundência – o uso exclusivo dos bens, quando não se destinam a um fim social”.[8] Esta intenção fica evidenciada com as seguintes palavras do Santo: “a posse deve ser do possuidor, não o possuidor da posse. Pois todo aquele que não usa seu patrimônio como possuidor, que não sabe dar com largueza e repartir com os pobres, é servo de suas posses, não senhor dela, porque guarda as riquezas de outros como criado e não usa delas como senhor”.[9]

Muitos outros Padres da Igreja concordam com esta opinião, enfatizando o uso universal dos bens, sem jamais excluir o direito à propriedade.[10] Também compartilham deste parecer renomados teólogos, dentre os quais o grande São Tomás de Aquino: “o homem não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas como comuns, neste sentido que, de bom grado, cada um as partilhe com os necessitados”.[11]

Segundo este ensinamento, todos os homens têm o direito de utilizar das criaturas, generosamente concedidas por Deus, para o seu uso e benefício.

Entretanto, para utilizar das criaturas, é necessário possui-las. Se não houvesse outro direito que assegurasse a propriedade privada, o direito universal ao uso dos bens seria impossível, vão ou inexistente, como se deduz das palavras de João Paulo II: “destinação e uso universal não significam que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos, e nem mesmo que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. Se é verdade que todos nascem com o direito ao uso dos bens, é igualmente verdadeiro que, para assegurar o seu exercício equitativo e ordenado, é necessário que se atue uma regulamentação”.[12]

O Direito de Propriedade

São abundantes as passagens das Sagradas Escrituras que revelam o desígnio divino com relação à propriedade dos bens e ao seu direito. O desenvolvimento da História bíblica e as numerosas prescrições jurídicas das Sagradas Escrituras que regulam o uso da propriedade constituem uma valiosa constatação do direito à propriedade dos bens criados, dos quais o homem se apodera.

No Novo Testamento, a pregação de Nosso Senhor Jesus Cristo e os ensinamentos dos Apóstolos se movem neste mesmo âmbito moral doutrinário,[13] como expressa claramente João XXIII: “a autoridade do Evangelho sanciona, sem dúvida, o direito da propriedade privada dos bens”.[14]

A força dos textos bíblicos também foi amplamente citada por João Paulo II, quando se tratava de fundamentar a doutrina sobre a propriedade, como correspondência ao trabalho do homem.[15]

Cabe-nos uma apreciação: se o direito à propriedade não tivesse importância para as Sagradas Escrituras, certamente não haveria um mandamento do decálogo que o protegesse. “Não roubarás” (Ex 20, 15)!

A Tradição dos Padres assume a defesa deste direito. Encontramos muitas alusões na Patrística, como as belas palavras de São Basílio: “se os bens particulares fossem maus, de modo algum teriam sido criados por Deus […]. O mandato de Deus não nos ensina que rechacemos ou nos despojemos dos bens como se fossem maus, senão que os administremos”.[16] Este bem da propriedade não é apenas um direito baseado na natureza do homem, mas também se torna útil para o bem comum de todos: “e é assim que uma disposição sã e sem más paixões com relação aos bens terrenos – uma sã administração deles conforme o mandato do Senhor – é grande ajuda para muitas coisas necessárias”.[17]

Iluminada, pois, pelas Sagradas Escrituras e pelo ensinamento dos Padres da Igreja, a Igreja defende o direito à propriedade, procurando o alto fim ético-social, conforme os desígnios da sabedoria divina e das disposições da natureza.[18]

Este ensinamento se encontra explícito no Catecismo e no Magistério ao longo dos séculos: “a propriedade de um bem faz de seu detentor um administrador da Providência, para fazê-los frutificar e para repartir os benefícios dessa administração a outros, a seus parentes, em primeiro lugar”.[19]

Leão XIII, na Encíclica Quod Apostolici Muneris, afirmou: “a sabedoria católica, apoiada nos preceitos da lei divina e natural, com grande prudência proveu também à tranquilidade pública e doméstica por seu sentir e doutrina acerca do direito de propriedade […]. A Igreja, com mais acerto e utilidade, reconhece a desigualdade entre as pessoas, desiguais por natureza de corpo e de espírito, bem como na posse de bens, e ordena que cada qual tenha intacto e inviolado o direito de propriedade e domínio que vem da própria natureza”.[20]

“A propriedade privada, como já vimos acima, é de direito natural para o homem: o exercício deste direito, sobretudo para quem vive em sociedade, é coisa não só permitida, mas também absolutamente necessária”.[21]

A Teologia Escolástica também ofereceu imponentes elementos para exprimir este sentimento da Igreja, em prol não apenas da licitude das posses, como da sua necessidade social: “é lícito que o homem possua bens como próprios. É até mesmo necessário à vida humana”.[22]

Cabe-nos uma pergunta, nascida do fundo dos corações católicos, tantas vezes pressionados pelas ideias inovadoras e anticristãs do mundo: como pôr em questão uma doutrina tão evidentemente definida pela Igreja, dando razão à uma ordem política também condenada pela Santa Sé?

Tudo isso parece consistir em resíduos daquilo que acusava Pio XI: “veneno suave que beberam avidamente muitos a quem um socialismo desvelado não pôde seduzir”[23]

Concordância entre os dois direitos

Com este brevíssimo estudo, parece o momento de chegarmos a uma conclusão conciliadora entre os dois conceitos, equivocadamente postos em contraposição por alguns de nosso tempo. O Princípio de distribuição universal dos bens concede dois direitos ao homem: o primeiro relacionado ao uso dos bens, por direito de concessão divina, e o segundo com relação à propriedade. Estes direitos nunca se contradizem, antes, se completam.[24]

Quanto ao primeiro, todo homem tem direito de utilizar as criaturas para as próprias necessidades e para o bem estar, pois o próprio Deus concedeu todas as coisas ao domínio responsável do ser humano. O uso destes bens traz consigo o direito à propriedade privada, a fim de manter a ordem do bem comum com relação ao uso das criaturas.

Assim afirmou Pio XI, com seu aguçado senso de doutrina social: “a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão de bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio”.[25]

Este direito nunca perde o vínculo com o primeiro – de uso universal dos bens – porquanto deve atender não apenas o próprio benefício, mas também o bem do próximo: “que o homem deva atender não só o interesse próprio, mas também ao bem comum, deduz-se da própria índole ao mesmo tempo individual e social do domínio a que nos referimos”.[26]

Quando estes dois direitos estão unidos na harmonia da caridade e do amor a Deus, os bens da propriedade privada estão assegurados, segundo o desígnio divino da distribuição universal dos bens, em favor da ordem e do bem comum.

Por Max Streit Wolfring


[1] PAULO VI. Gaudium et Spes, n. 69.

[2] Cf. JOÃO PAULO II. Compêndio de Doutrina Social da Igreja, n. 172.

[3] Cf. PAULO VI. Op. cit., n. 26.

[4] JOÃO PAULO II. Op. cit., n. 172.

[5] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 2402.

[6] LACTÂNCIO. Institutiones Divinæ. 5 (PL 5, 564).

[7] SANTO AMBRÓSIO. Liber de Nabuthe. 2, 11 (PL 14, 134).

[8] FERNÁNDEZ, Aurelio. Teología Moral: Moral Social, Económica y Política. 3. ed. Burgos: Facultad de Teología del Norte de España, 2001, v. 3, p. 686.

[9] SANTO AMBRÓSIO. Op. cit., 15, 63 (PL 14, 751).

[10] Apresentamos alguns exemplos eloquentes: BASÍLIO. Homilia dicta temporis famis. 8 (PG 31, 320); CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Pædagogus. 2, 12 (PG 31, 320); CRISÓSTOMO. Homilia. 1, 12 (PG 48, 980); Id. Homilia. 2, 1-5 (PG 48, 982-986).

[11] SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II, q.66, a. 2.

[12] JOÃO PAULO II. Op. cit., n. 173.

[13] Cf. FERNÁNDEZ, Aurelio. Op. cit., p. 674-675.

[14] JOÃO XXIII. Mater et Magistra, n. 121.

[15] Cf. JOÃO PAULO II. Laborem Exercens, n. 4.

[16] SÃO BASÍLIO. Regulæ Brevius Tratactæ. 92. (PG 31, 1146).

[17] Loc. cit.

[18] Cf. PIO XII. Radiomensaje en el V aniversario del comienzo de la Guerra. 1 de setembro de 1944.

[19] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 2404.

[20] LEÃO XIII. Quod Apostolici Muneris. (DH 3133).

[21] LEÃO XIII. Rerum Novarum. (DH 3267).

[22] SANTO TOMÁS DE AQUINO. Op. cit., II, q.66, a. 2.

[23] PIO XI. Quadragesimo Ano, 15 de maio de 1931.

[24] Cf. PAULO VI. Populorum Progressio. n. 22-23 (ASS 59, 1967, 268-269).

[25] PIO XI. Op. cit. (DH 3727).

[26] Ibid. (DH 3728).

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