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Ser eternamente feliz ou infeliz?

A vida do homem começa e termina nessa terra, ou há uma recompensa eterna após a morte?

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Redação (16/09/2020 10:32, Gaudium Press) Uma doutrina antiga, acreditada por homens ilustres, parece estar oculta nos livros dos séculos que nos precederam, mas reside no fundo da consciência de todos os homens, mesmo daqueles que dela procuram se esquecer ou negar: a concepção católica da vida futura.

Durante a permanência do homem nessa terra, gradualmente se arraiga nele a certeza de que é ele falível e fraco, seja pelos erros que sua inteligência comete – mesmo sendo ela “quase ilimitada”, como pensam alguns – seja pela fraqueza humana que se manifesta nos frequentes males ou incômodos que sofre, por mais sadio e vigoroso que seja seu corpo. Torna-se evidente assim, que todo homem tende para um fim natural que, a cada dia, se aproxima mais e se faz também mais sensível.

No entanto, quantas ilusões podem povoar a alma humana e justificar, por longos períodos de tempo, uma série de atos ou hábitos que suas paixões o levam a praticar. Instintos animais que eclodem e parecem exigir da natureza decaída o tributo pelo pecado original cometido por Adão e herdado por sua posteridade.

Deixando-se levar pelo erro, peca o homem, cai na lama do gozo das paixões desordenadas e afunda-se nas águas turvas que confundem sua inteligência, outrora inocente. Contudo, cedo ou tarde, ó misericórdia divina, vibram em sua alma certas cordas que procuram despertar aquele pobre miserável e reconduzi-lo ao caminho do bem. Embora rejeitado, ele sabe, ao menos subconscientemente, que é real e verdadeiro o fim que seu ser deve buscar; uma vida correta e perfeita, merecedora de um prêmio eterno: a bem-aventurança do Céu.

 O homem sempre age de acordo com princípios

Como entender, então, as atitudes más do ser humano?

O homem, ser lógico ao extremo, incapaz de fazer o mal pelo mal, sempre tem motivos, aliás inúmeros, para agir. A questão está em saber o quanto essas razões correspondem com o Bem Supremo, Deus. De fato, a bondade presente num ato mal, que sua vontade apetece e está decidida a praticar, não passa de uma racionalização que serve apenas para justificá-lo frente à sua própria consciência. Assim, essa mesma lógica obriga sua inteligência a crer, por um princípio de justiça, que os atos bons merecem ser recompensados e que os atos maus são merecedores de um castigo.

Nessa vida, isso é muito claro, uma vez que as coisas materiais são patentemente mais mensuráveis que as espirituais. Mas, no que diz respeito às realidades espirituais, sempre paira uma dúvida cruel. O homem gostaria de ser capaz de governar as realidades espirituais no intuito de ter mais segurança no seu proceder. No entanto, isso não lhe é dado, ao menos nessa terra, pois ele se julgaria deus e senhor absoluto de si mesmo. Pobre criatura contingente, que por vezes quer ser a todo custo necessária!

Por que, então, há tanta incongruência em admitir que os atos humanos devem ser avaliados e recompensados segundo os critérios da justiça criminal dos homens, e não ter a certeza de que os serão também pela justiça divina, que os há de julgar na eternidade?

Um composto de corpo e alma

O homem é um composto de corpo e alma, já o dizia Aristóteles, insuspeito filósofo grego, que não estava “influenciado” pelas doutrinas do cristianismo, e que chegou, pela pura razão, à certeza de que o homem tem uma realidade material e espiritual. Até aí, sua sabedoria era capaz de voar, mas sobre o que acontece após a morte, a sabedoria humana se cala ou especula, engana-se muitas vezes, e apresenta teorias que contradizem a própria razão das coisas. Por conseguinte, acusa de fideísta a doutrina católica, a qual longe de contradizer a razão, só não é explicável pela ciência. Nada na doutrina católica contradiz a razão, mesmo os mistérios que a excedem e transpassam os limites de seu voo, por mais alto que seja.

De fato, já dizia Aristóteles que, por vezes, é melhor calar do que dizer ignorâncias: “O ignorante afirma, o cientista duvida, o sábio reflete”. Se não podemos afirmar, porque ainda somos ignorantes, paremos de falar um instante, e passemos a refletir até onde os limites de nossa pobre razão pode chagar.

A vida futura é eterna?

A Doutrina Católica, expressa na Revelação, ensina que a eternidade pode ser feliz ou infeliz. Vejamos uma explicação sobre isso à maneira de perguntas e respostas.

Comecemos pelas objeções contra a justiça de Deus:

1º “Não há proporção entre a culpa e o castigo se o inferno for eterno.”

Reconhecemos que a pena não deve exceder a gravidade da culpa, mas, segundo todas as normas da justiça, a deve igualar, e esta é a razão pela qual admitimos, como consequência necessária, a eternidade do castigo. Com efeito, a gravidade da culpa se mede pelos dois extremos, isto é, pela grandeza do ofendido e pela baixeza do ofensor. Por conseguinte, não deve ser eternamente castigada a malícia do pecado que é sumamente grave e de alguma maneira infinita?

2º “Deus não se deixará abrandar pela expiação, como a justiça humana, que solta, depois de cumprida a pena, o culpado a quem condenou?”

Não, porque na outra vida a pena não expia nada, visto que nada muda no coração. Aquilo que expia realmente é a pena aceita por arrependimento. Ora, o arrependimento não é mais possível além desse mundo. Sob o peso da justiça divina, o condenado ao inferno pode sentir o pesar, que nasce da culpa, mas não o arrependimento, que nasce do amor. O inferno só conhece o ódio: é o estado fixo e permanente de uma alma revoltada contra Deus. Deus deve, portanto, à sua justiça e santidade deixar o pecador impenitente eternamente longe de si nos suplícios por ele merecidos.

3º”Mas se a justiça de Deus não pode tornar o pecador participante da recompensa, pelo menos, não ficaria satisfeita com o aniquilamento do pecador?”

Em primeiro lugar, o aniquilamento é contrário a todo o plano da criação. Por amor, Deus criou o homem imortal e livre. Deus não tem que alterar estes desígnios devido ao abuso que o homem faz da liberdade. Além disso, o aniquilamento não é uma pena, é uma simples privação da existência que não traz nem sofrimento nem dor alguma. Supondo mesmo que fosse uma pena verdadeira, seria insuficiente para conter os homens no dever; por conseguinte, não seria uma sanção da lei moral. Quantos pecadores desejam o aniquilamento que os livraria de Deus para sempre! Afinal, na privação da existência, não pode haver gradações; logo, este castigo, se castigo fosse, não seria apropriado aos diversos graus de culpabilidade. Depois de um primeiro crime, que motivo teria o pecador para deixar de cometer outro ainda mais grave? Portanto, o aniquilamento de réu não convém à justiça de Deus.

Se não pela justiça, ao menos pela bondade

722px Langenzenn Stadtkirche Fenster Wilhelm II 5Não se podendo, em nome da justiça de Deus, objetar coisa alguma concludente contra o inferno, recorre-se à sua bondade.

“Deus é bom; portanto, não pode, após alguns séculos, ficar insensível às penas de almas criadas por ele.”

Sim, Deus é bom: a sua clemência e a sua misericórdia são infinitas, e os seus divinos atributos permanecem para sempre. Deveria a bondade excluir a justiça, ou seja, Deus exercer a misericórdia com detrimento da sabedoria, sem levar em conta nossos atos livres e culpados?

Sobre a terra, Deus para com os pecadores, dá livre curso à sua clemência e à sua bondade: ensinamentos, ameaças, socorros, sacramentos, Redenção, enfim, dá-lhes tudo e de tudo abusam do modo mais deplorável. Desse modo, após abuso, em lugar da bondade que se tornaria fraqueza, Deus substitui pela justiça. Digamos mais: a justiça tem que ser inexorável em proporção à bondade e ao amor ultrajado. Com razão, Dante coloca sobre a porta do inferno esta palavra eminentemente verdadeira: “Sou a obra do eterno amor!” Com efeito, aqueles que abusaram dos dons de Deus não têm mais o direito de solicitar novos benefícios de sua misericórdia; e as penas, mesmo eternas que a sua justiça lhes impõe, não são mais graves que o pecado por eles cometido, e talvez estejam abaixo da ultrajante ingratidão que tiveram para com o Criador.

Além disso, os condenados são os únicos responsáveis por seu eterno castigo. Violando as leis de Deus livre e conscientemente, incorreram no castigo destinado à sua culpa e renunciaram à eterna Bem-aventurança. Dela serão, portanto, eternamente privados. Do mesmo modo que aquele que arranca seus olhos, fica para sempre cego, embora lastime o seu ato de loucura e brutalidade, assim o pecador que, por si próprio, se exclui do Céu, será eternamente privado das divinas e celestiais claridades. Deus não é mais obrigado a restituir-lhe o Céu como a curar aquele que voluntariamente se privou da vista[1].

Essas simples razões esclarecem que a recompensa que mereceremos após a morte é sempre de acordo com a justiça e proporcionada aos atos que praticamos nessa vida. Por isso, é sapiencial o conselho do Eclesiástico: “Pensa em teus novíssimos e não pecarás eternamente” (Eclo 7, 40).  Aquele que medita na gravidade da sua eterna recompensa, não será capaz de viver uma vida de libertinagens que o afasta da eternidade feliz. Tudo o que acontece nessa terra é passageiro demais para trocarmos por aquilo que é eterno.

Por Odair Ferreira


[1] Baseado em Curso de instrução religiosa, por Mons. Cauly. Tomo IV. São Paulo: Livraria Francisco Alvez e Cia, 1914.

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